- Saneamento inteligente: tecnologia vira aliada contra o colapso climático Iniciativa bilateral fortalece cooperação e troca de conhecimento entre Brasil e Holanda no setor de saneamento
FUAD MOURA, coordenador da Câmara Técnica de Inovação da Aesbe e assessor de Projetos Especiais e Novos Negócios da Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb)
As mudanças no padrão climático têm gerado desafios complexos e extremos, como inundações urbanas, estiagens prolongadas e colapsos de infraestrutura, além de eventos totalmente imprevisíveis, o que muitas vezes impede ações preventivas dos responsáveis pelo saneamento e a gestão hídrica.
Nesse contexto, a tecnologia vem se mostrando uma grande aliada na resposta ágil e efetiva aos desastres climáticos. Hoje, o Brasil já conta com ferramentas como sensores inteligentes para monitoramento em tempo real, plataformas de modelagem preditiva, inteligência artificial no planejamento de redes e sistemas de alerta precoce.
Em evolução constante para enfrentar e mitigar os desafios desse novo tempo, as inovações fortalecem a resiliência urbana e operacional das companhias de saneamento, tornando-se um catalisador importante no desafio duplo em que o setor se encontra, como explica Fuad Moura, coordenador da Câmara Técnica de Inovação da Aesbe e assessor de Projetos Especiais e Novos Negócios da Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb).
“As mudanças climáticas exigem respostas urgentes, e a sociedade cobra serviços mais eficientes e inclusivos. É aqui que a inovação, seja tecnológica ou gerencial, disruptiva ou incremental, torna-se nossa maior aliada. Podemos buscar, por exemplo, soluções com uso de inteligência artificial para prever crises hídricas e reduzir perdas na distribuição de água, sistemas de reúso que garantem segurança hídrica e tecnologias acessíveis e novas propostas de atuação para levar saneamento básico a comunidades vulneráveis”, avalia.
Na Aesbe, por meio da Câmara Técnica de Inovação, Moura coordena discussões sobre caminhos para transformar esse potencial em realidade. Uma das frentes analisa como as empresas podem estruturar os Programas de PDI incluindo a inovação como sistemática, não ocasional.
O objetivo é buscar meios de promover a inovação aberta, tentando conectar as companhias de saneamento com startups e universidades.
Moura cita como exemplo a Caesb, que mantém uma parceria de décadas com a Universidade de Brasília (UnB), que já rendeu frutos para o sistema produtor de água, a gestão de perdas e nos processos de tratamento de esgoto. “É sempre importante ressaltar que nossa visão de inovação vai além da tecnologia. Quando falamos em saneamento do futuro, estamos pensando tanto em eficiência operacional quanto em inclusão social. Projetos como o saneamento integrado em comunidades carentes ou soluções de autogestão para áreas rurais mostram que inovação é também sobre equidade”, completa o coordenador da Câmara Técnica de Inovação. Segundo ele, as companhias devem atuar no combate às mudanças climáticas com tecnologia, mas sem nunca perder de vista seu papel social, o que só é possível com o fortalecimento do setor: empresas comprometidas, universidades inovadoras, startups ágeis e um marco regulatório que fomente essas conexões. Sabesp usa inteligência artificial no planejamento de abastecimento e combate a vazamentos Em São Paulo, a Sabesp vem investindo em inovações que prometem deixar o saneamento mais inteligente. A empresa acaba de anunciar a contratação de um serviço para monitorar as chuvas e planejar o abastecimento de forma mais eficaz por meio do aperfeiçoamento da análise de cenários das mudanças climáticas. Uma consultoria especializada na integração de previsões meteorológicas e hidrológicas vai acompanhar os níveis dos mananciais que abastecem cerca de 22 milhões de pessoas. Com uso de inteligência artificial, a ferramenta cruza a base de dados da companhia com as previsões meteorológicas. O investimento é de R$1,5 milhão. “A Sabesp possui séries históricas de dados de armazenamento de água e do volume de chuvas que permitem analisar cenários anteriores, como uma grande seca que aconteceu em 1953 e a crise hídrica de 2014. Essa ampla base de informações, associada à tecnologia, vai ajudar a companhia a prever com mais precisão os extremos climáticos e os impactos para o sistema de abastecimento”, explica Alexandre Bueno, gerente do departamento de Recursos Hídricos da Sabesp. Os primeiros boletins diários da IA serão gerados a partir de julho. No momento, as equipes da Sabesp e os consultores estão inserindo as informações na plataforma. O projeto será implementado inicialmente nos reservatórios do Sistema Cantareira, o maior dos administrados pela companhia. Enquanto isso, outro projeto piloto na capital paulista acaba de atestar a importância do uso de inteligência artificial no saneamento. Combinada com imagens de satélite, uma nova solução identificou cinco vezes mais vazamentos que o método tradicional na região da Consolação.
INOVAÇÃO
A tecnologia, já aplicada em países como Israel e Inglaterra, foi testada pela empresa paulistana e comparou a detecção de perda de água com o modelo atual, via escuta. A região escolhida para o experimento é de alta complexidade graças às diversas interferências no subsolo, como redes de gás, energia elétrica e dados, além do tráfego de veículos intenso. Em 50 quilômetros de redes, a abordagem tradicional encontrou 14 vazamentos. A nova ferramenta detectou 81 pontos, sendo capaz de localizar vazamentos menores e praticamente indetectáveis pelo ouvido humano. A tecnologia não substitui a escuta acústica, mas as equipes passam a ser enviadas para áreas onde há maior probabilidade de grandes vazamentos. “Isso melhora o direcionamento das equipes, aumenta a eficiência do trabalho e traz resultados cada vez melhores”, explica Débora Pierini Longo, diretora de Operação e Manutenção da Sabesp, que confirmou a contratação da tecnologia após o sucesso dos testes. Cidades que concentram 17% de toda a perda de água das áreas que a companhia atende, como São Paulo, Suzano, Barueri, Itaquaquecetuba e Osasco, receberão a inovação. Inovar para resistir e universalizar Diante de um cenário climático cada vez mais desafiador, o setor de saneamento se vê diante da urgência de inovar para sobreviver — e de evoluir para garantir equidade. Casos como o da Sabesp e iniciativas coordenadas pela Aesbe mostram que a tecnologia, quando aliada a uma visão estratégica e inclusiva, pode transformar crises em oportunidades. O caminho está traçado: investir em soluções inteligentes, promover parcerias com centros de pesquisa e fortalecer o papel social das companhias públicas. Só assim será possível enfrentar os impactos das mudanças climáticas com resiliência, eficiência e compromisso com a universalização do saneamento.
- SUSTENTABILIDADE
Reúso de água – De alternativa emergencial à estratégia essencial para a segurança hídrica e a sustentabilidade urbana
Reciclar para garantir o futuro faz com que o reúso de água se firme como solução estratégica na América Latina. Entidades do setor apontam os avanços e desafios para consolidar essa prática essencial, transformando mentalidades e impulsionando investimentos para a segurança hídrica duradoura.
Acrescente pressão sobre os recursos hídricos, impulsionada pelas mudanças climáticas, pelo aumento populacional e pela intensificação do consumo, tem direcionado o olhar para o reúso de água como uma solução estratégica e de caráter permanente. A América Latina, palco de crescente vulnerabilidade hídrica, testemunha uma transformação na percepção e na prática do reúso de água. O que antes era considerado uma solução emergencial, impulsionada por crises de abastecimento em grandes centros urbanos e setores econômicos essenciais, hoje se consolida como pilar fundamental para garantir a segurança hídrica, reduzir a pressão sobre mananciais, otimizar a eficiência dos sistemas urbanos e promover a sustentabilidade. Nesse cenário de transformação, o Instituto Reúso de Água vem atuando na promoção e no avanço dessa prática no Brasil. Ana Silvia Santos, fundadora e CEO do Instituto, destaca que a percepção e a prática do reúso de água no Brasil têm experimentado avanços significativos nos últimos anos, impulsionados principalmente pela crescente preocupação com a falta d’água. “A falta d’água, seja na forma de escassez física devido a secas prolongadas, seja como estresse hídrico onde a demanda supera a oferta, é o principal motor desse avanço”, afirma. Para Ana Silvia, o marco regulatório exerce grande importância para a concretização da prática. “Para colocar o reúso em prática, é preciso um quadro regulatório bem estabelecido, algo que ainda não temos em nível nacional”, explica. No entanto, ela ressalta o progresso em algumas unidades federativas. “Hoje, em nível nacional, oito delas já possuem regulamentação com a definição de parâmetros e padrões de qualidade da água para reúso. O próprio marco legal do saneamento de 2020 indica o reúso como prioritário na gestão eficiente da água, e a partir dele vimos avanços regulatórios em Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Paraná”, comenta. Embora o Instituto Reúso de Água tenha sido formalizado há dois anos, Ana explica que atuam desde 2021, com o lançamento do portal reusodeagua.org, promovendo discussões e defendendo um marco regulatório robusto. “Hoje, contamos com a confiança e o apoio de grandes empresas do setor, membros associados que incentivam nosso trabalho para impulsionar o reúso. A indústria tem sido um protagonista fundamental nesse avanço, pois a falta d’água representa um risco de falência, motivando-a a buscar ativamente soluções de reúso junto às concessionárias e companhias de saneamento”, informa. Neste âmbito, o projeto Aquapolo, implementado há 10 anos, é citado como um exemplo bem-sucedido. “O Aquapolo foi um grande marco e hoje é o maior projeto de produção de água industrial a partir do reúso na América Latina. Dez anos depois, começamos a ver projetos similares ou inspirados nele”, conta Ana Silvia.
Reúso como estratégia permanente
A consolidação do reúso como estratégia permanente para a segurança hídrica se sustenta em sólidos argumentos técnicos, econômicos e ambientais, conforme a visão do Instituto Reúso de Água. Ana Silvia aponta um conjunto de fatores interligados que reforçam essa mudança de paradigma. “Além da questão da falta d’água em suas diversas formas, temos as mudanças climáticas, que hoje são percebidas pela sociedade de maneira geral, e as mudanças nos nossos hábitos de consumo, com uma demanda crescente e, muitas vezes, insustentável”, elenca. Ela também menciona o crescimento populacional como um fator de pressão adicional. Como evidencia a especialista, a chave para uma gestão hídrica eficiente reside na compreensão de que água é uma só: “seja água residual, água de chuva, água de rio, água subterrânea, água do mar, tudo isso é água. A sensação de falta d’água que temos é, na verdade, a falta da água fácil, aquela que sempre extraímos preferencialmente de fontes superficiais e subterrâneas”, explica. A transição para um novo patamar de gestão hídrica implica a adoção de “fontes sustentáveis de água”, como águas residuais tratadas, água do mar e água da chuva, complementando a matriz hídrica, assim como ocorreu no setor energético. “No Brasil, passamos de uma matriz quase exclusivamente hidroelétrica para a incorporação de outras fontes, como eólica e solar. No setor hídrico, precisamos seguir o mesmo caminho”, defende. Do ponto de vista econômico, o reúso torna-se viável a partir do momento em que a escassez hídrica impõe custos ainda maiores. “Ficar sem água não tem preço. A viabilidade econômica não se resume ao custo da obra ou da tarifa; é preciso considerar o custo de não ter água”, argumenta Ana Silvia, citando o exemplo da Braskem, âncora do Aquapolo, que enfrentaria sérias dificuldades em uma situação de seca prolongada. Ambientalmente, o reúso representa a utilização de um recurso já disponível, contribuindo para a preservação de mananciais e a redução da descarga de efluentes em corpos hídricos. Socialmente, a disponibilidade de água impulsiona o desenvolvimento socioeconômico, sendo essencial para regiões com histórico de escassez. A CEO do Instituto Reúso de Água enfatiza, também, a disponibilidade de tecnologia, conhecimento, recursos, engenharia e infraestrutura para transformar qualquer tipo de água em água de qualidade. “A água é água, não importa de onde ela vem. Hoje temos as ferramentas para produzi-la a partir de qualquer outra fonte”, observa. Apesar dos avanços, o Brasil ainda enfrenta desafios regulatórios significativos para a implementação em larga escala de projetos de reúso de água. Ana Silvia aponta essa questão como um foco central do trabalho do Instituto. “Esse é um tema de pesquisa nosso há mais de dez anos, com diversas publicações científicas. Desenvolvemos uma linha do tempo da legislação de reúso em vários países, que inclusive foi citada em um documento oficial da ONU, e percebemos uma grande evolução no mundo, enquanto o Brasil ainda patina”, diz. Ela reconhece os avanços pontuais no país, mas frisa que há muito a ser feito. “Temos exemplos internacionais que podem servir de inspiração, mas é fundamental adaptá-los à nossa realidade, que é complexa devido às dimensões continentais e às grandes diferenças socioeconômico-culturais e ambientais”, atenta. Segundo Ana Silvia, em 2024, o Instituto Reúso de Água, em colaboração com seus membros associados no Grupo de Trabalho (GT) Diretrizes, desenvolveu diretrizes voluntárias e imparciais, cujo objetivo foi apresentar ao governo federal uma proposta para a legislação nacional de reúso, abrangendo parâmetros, padrões de qualidade da água, planejamento de monitoramento e diversas aplicações. “Essas diretrizes foram fruto de várias reuniões do GT ao longo de 2024, e o documento final foi lançado no dia 16 de maio, no canal do YouTube do Instituto, marcando a abertura do Movimento Reúso de Água 2025, que inclui seis eventos (quatro presenciais e dois online) entre 16 de maio e 16 de junho”, informa e acrescenta: “tivemos a presença de grandes líderes do governo federal e entidades públicas e privadas neste lançamento.”
Viabilidade econômica além da tarifa e análise do ciclo de vida
A viabilidade econômica é um fator determinante para a adoção generalizada do reúso e o Instituto Reúso de Água busca desmistificar a visão tradicional focada apenas na tarifa. Ana Silvia Santos questiona a mentalidade de algumas companhias de saneamento que veem o reúso como perda de receita. “Pensar que disponibilizar água para reúso gera perda de receita é, na minha opinião, um pensamento equivocado. Perde-se uma receita, mas pode-se ganhar outra, uma receita acessória”, observa. Ela defende que os gestores e tomadores de decisão precisam criar a necessidade de incorporar essa receita acessória em seus modelos de negócio. Para ela, o caso do Aquapolo ilustra um modelo bem-sucedido. “O Aquapolo se viabilizou porque uma indústria garantiu o pagamento da tarifa por 40 anos em contrato. Esse é um bom modelo, desde que haja um polo industrial”, comenta. Para cenários sem grandes polos industriais, Ana Silvia aponta outras possibilidades, como o abastecimento por caminhão-pipa ou a simbiose industrial, por meio da qual o efluente de uma indústria serve como matéria-prima para outra.
O lançamento, pela Aegea, da Unidade de Negócio Apura, focada no fornecimento de água para reúso, é outro exemplo promissor em sua avaliação. “A Aegea firmou contrato com a Braskem para fornecer água para reúso ao abastecimento total da sua unidade industrial em Duque de Caxias (RJ). Obras de saneamento, embora custosas e complexas, são algo rotineiro para uma empresa de saneamento. O Aquapolo, com seus 17 quilômetros de extensão passando por três municípios, demonstra a viabilidade técnica, apesar do custo do transporte”, avalia. Deste modo, Ana Silvia enfatiza que não existe uma “receita de bolo” única para a viabilidade econômica do reúso. “O modelo ideal depende do cenário específico. O Aquapolo é uma solução excelente para o que se propôs, mas não serve para tudo”, considera. Ela retorna à questão do custo de não ter água como um fator crucial na análise econômica. “A viabilidade econômica tem que considerar o custo de ficar sem água. Na seca de 2013/2014, a Braskem ficaria um período sem água e poderia colapsar. Esse é o verdadeiro custo”, aponta. Além disso, a CEO do Instituto Reúso de Água defende a incorporação da análise do ciclo de vida (Life Cycle Assessment) e do custo do ciclo de vida (Life Cycle Cost) nas avaliações econômicas. “O termo viabilidade econômica sozinho leva a um raciocínio limitado de tarifa, Capex e Opex. Uma análise do ciclo de vida revela outras conclusões, considerando os custos ambientais”, explica. Ela percebe uma mudança de mentalidade no Brasil, impulsionada pelo conhecimento e pela conexão, áreas em que o Instituto investe por meio de cursos e interação. “Nossa bandeira é clara: a água é uma só. Não importa de onde ela vem ou a qualidade que tem; conseguimos produzir água a partir de água, mesmo que seja de excelente qualidade a partir de esgoto bruto, graças à tecnologia, infraestrutura, recursos e engenharia disponíveis”, menciona. A mensagem de Ana Silvia Santos para as companhias de saneamento é a necessidade de uma mudança radical de entendimento. “Precisamos sair do século XX e entrar no século XXI. A gestão atual é ultrapassada para os desafios que enfrentamos. O papel do Instituto é incutir esses entendimentos diferentes para aumentar a receptividade por parte dos empresários”, informa.
Setores com maior potencial e casos de sucesso
O Brasil possui um enorme potencial para a adoção do reúso de água, especialmente na interface entre demanda e oferta. Ana Silvia explica que, apesar da baixa oferta atual devido ao tratamento de apenas 50% do esgoto, a alta demanda em diversos setores abre um leque de oportunidades. “Talvez haja uma vantagem em não termos universalizado ainda nossos serviços de saneamento: a possibilidade de avançar já considerando o reúso na concepção das Estações de Tratamento de Esgoto (ETEs). Enquanto países desenvolvidos adaptam suas estruturas existentes, o Brasil pode integrar o reúso desde o projeto de novos sistemas de esgotamento sanitário e polos industriais”, aponta. Indústrias hidro intensivas e a agricultura irrigada se destacam como setores com grande potencial. “Em regiões como São Paulo, o estresse hídrico é agravado pelas indústrias que consomem muita água. O reúso pode ser uma solução para abastecer esses polos industriais, assim como grandes áreas de irrigação, comuns no Brasil, diferentemente de países como Portugal, onde a agricultura é mais familiar”, explica. Outras aplicações promissoras incluem a recarga de aquíferos, especialmente em regiões com superexploração. “A recarga de aquíferos é comum em países do Mediterrâneo, como Grécia, Chipre e Malta, onde quase 90% do esgoto é utilizado na agricultura, resolvendo 40% da demanda hídrica. A China também tem investido no reúso industrial como estratégia de crescimento, assim como Singapura”, informa Ana Silvia. Para a engenheira, a inovação tecnológica desempenha um papel fundamental na eficiência e segurança dos sistemas de reúso de água. Ela explica que existem tecnologias convencionais capazes de gerar efluentes tratados de boa qualidade para diversas aplicações e tecnologias mais avançadas para usos mais exigentes. “Para uso potável, tanto direto quanto indireto, é necessária uma combinação de tecnologias avançadas, como membranas, desinfecção e processos oxidativos avançados. Para usos urbanos, como lavagem de ruas e irrigação de canteiros, dependendo da restrição de contato, tecnologias mais simples, como tratamento secundário e desinfecção por cloro, ultravioleta ou ozônio podem ser suficientes”, orienta. Neste cenário, o Instituto Reúso de Água acompanha de perto as tendências em tratamento, monitoramento e distribuição, classificando as tecnologias em categorias de nível secundário, secundário desinfetado e avançado, cada uma atendendo a diferentes demandas de qualidade da água.
Virada de chave para o Século XXI
Ana Silvia destaca o avanço da Lei 14.026 ao mencionar a palavra “reúso” oito vezes, em contraste com a ausência na lei anterior. “Esse foi um grande passo, mas transformar isso em realidade é outro abismo. Precisamos dar um salto imenso, construindo uma ponte para essa nova realidade, mudando nosso mindset”, alerta. A CEO do Instituto Reúso de Água acredita que o Brasil já possui condições de agir. “Estávamos na discussão e no debate. Agora temos a oportunidade de agir. Essa é a minha principal mensagem”, conclui.
- SUSTENTABILIDADE
Segurança hídrica latino-americana passa pelo reúso estratégico
A expansão do reúso na América Latina, segundo Eduardo Pedroza, diretor da Associação Latino-Americana de Dessalinização e Reuso de Água (Aladyr Brasil), é intrinsecamente ligada à crescente valorização estratégica da água pela sociedade, diante de um cenário de vulnerabilidades hídricas cada vez mais evidentes. “Crises de abastecimento que antes se restringiam a regiões áridas ou semiáridas, nos últimos 15 anos passaram a impactar áreas com maior disponibilidade, mas com demandas de consumo elevadas, como São Paulo, Cidade do México e Montevidéu”, explica o diretor. Este novo contexto, agravado pelos efeitos das mudanças climáticas, abriu espaço para a adoção de soluções baseadas na economia circular da água. Na avaliação da Aladyr, este cenário impulsionou avanços significativos na percepção e prática do reúso. Entre eles, Pedroza destaca que na América Latina observa-se um reconhecimento estratégico do reúso e da dessalinização por governos, que os incorporam como elementos centrais na diversificação da matriz hídrica. “Destacamos a iniciativa pioneira do Governo do Espírito Santo, que, em parceria com a ArcelorMittal, realizou a primeira concorrência pública para fornecimento de água de reúso no Brasil”, informa. Paralelamente, segundo ele, constata-se um crescimento significativo de projetos e investimentos no setor, impulsionado pela crescente demanda do setor privado por tecnologias de reúso e dessalinização em busca de eficiência e competitividade. “O aumento nas importações de membranas no Brasil e em outros países da região reflete esse avanço tecnológico. No campo da dessalinização, são notáveis os ganhos em eficiência energética, como exemplificado no Chile, onde projetos recentes operam com um consumo significativamente menor. Outro indicativo do amadurecimento do tema é a proliferação de projetos de lei voltados à regulamentação e ao estímulo do reúso, bem como o surgimento de modelos de negócio inovadores, a exemplo dos contratos BOO/BOT e das parcerias integradas em complexos industriais, que possibilitam a viabilização de projetos mais robustos e sustentáveis”, descreve o executivo. Fundada em 2010, a Aladyr tem contribuído ativamente para essa evolução através de:
• Promoção de eventos e congressos: a associação organiza eventos como o Congresso da Aladyr Brasil, plataformas para divulgar projetos, fomentar debates sobre políticas e inovações. O evento de 2023, com forte presença brasileira, motivou iniciativas em andamento no Espírito Santo e na Vale.
• Advocacy e políticas públicas: a organização atua como voz ativa, alertando sobre a necessidade de políticas fortes e investimentos em infraestrutura de reúso para enfrentar os desafios hídricos regionais.
• Educação e capacitação: projetos como as “Olimpíadas da Água” e capacitações internacionais visam formar alunos e profissionais sobre a gestão sustentável da água. Para a Aladyr, o reúso transcende a visão de solução emergencial, consolidando-se como estratégia estrutural e permanente, sustentada por argumentos técnicos, econômicos e ambientais robustos. Tecnicamente, Eduardo Pedroza destaca que a eficiência e a confiabilidade dos sistemas são asseguradas por tecnologias avançadas de tratamento, como as membranas (MBR, UF, RO), que garantem alta qualidade para aplicações diversas, incluindo uso potável indireto e industrial exigente. “Além disso, a flexibilidade de aplicação dos sistemas de reúso permite sua adaptação a diferentes contextos urbanos, industriais e agrícolas, com implantação modular e integração à infraestrutura já existente. Um ponto crucial é a independência climática do reúso, que, ao contrário das fontes tradicionais, não depende diretamente do regime de chuvas, conferindo resiliência frente às mudanças climáticas”, explica. No âmbito econômico, apesar do investimento inicial, o executivo lembra que o reúso demonstra potencial para redução de custos a longo prazo, tornando-se competitivo, especialmente em regiões com escassez hídrica e altos custos de captação e tratamento de fontes convencionais. “Para o setor industrial, a garantia de uma fonte estável e controlada de água reduz significativamente os riscos de desabastecimento e interrupções produtivas em setores intensivos no uso desse recurso. Ademais, o reúso estimula a inovação e o desenvolvimento de novos modelos de negócio, fomentando parcerias público-privadas (PPPs), contratos do tipo BOO/BOT e outros arranjos institucionais que atraem investimentos e promovem a modernização do setor”, comenta. Finalmente, os argumentos ambientais reforçam a importância do reúso, uma vez que ele diminui a pressão sobre mananciais como rios, lagos e aquíferos, contribuindo para a conservação dos ecossistemas e a manutenção dos serviços ambientais. “O tratamento e o reaproveitamento de efluentes resultam na redução da poluição hídrica, evitando a descarga de poluentes em corpos d’água e melhorando a qualidade ambiental. Em uma perspectiva mais ampla, o reúso contribui para a economia circular, inserindo o recurso hídrico em um ciclo mais sustentável, alinhado aos princípios da gestão integrada de recursos”, ressalta Pedroza. Desafios regulatórios no Brasil e inspiração internacional Apesar dos avanços tecnológicos e da crescente necessidade, o Brasil ainda enfrenta barreiras legais e normativas para a implementação em larga escala do reúso. Para a Aladyr, segundo Eduardo Pedroza, superar esses entraves é fundamental. Ele aponta a ausência de uma regulação nacional clara e unificada como principal obstáculo. “A produção de água de reúso ainda carece de normas que definam titularidades, clareza fiscal, procedimentos para acesso competitivo a esgotos por atividades econômicas, responsabilidades e diretrizes operacionais”, detalha. A diferenciação entre tipos e usos do reúso (potável, industrial, agrícola, urbano não potável, recarga de mananciais) com parâmetros de qualidade, monitoramento e controle específicos para cada finalidade, apenas quando necessário, também é fundamental. O diretor ressalta que uma regulação excessiva para usos industriais não potáveis pode ser prejudicial, dada a diversidade de processos produtivos. Já para recarga de mananciais, parâmetros rigorosos são indispensáveis. No reúso agrícola, a atenção deve se voltar às especificidades de manejo e ambientais. Outra barreira relevante é a falta de incentivos econômicos e financeiros para remunerar adequadamente os operadores e atrair consumidores industriais e agrícolas. Pedroza observa que a reforma tributária, a qual onera as atividades de reúso e saneamento, contraria o princípio de incentivar a sustentabilidade ambiental. “O reúso e a dessalinização são instrumentos centrais para a diversificação da matriz hídrica e devem ser reconhecidos como integrantes da taxonomia verde, como na União Europeia”, defende. A Aladyr enfatiza a importância de o Brasil se inspirar em modelos internacionais consolidados, como Singapura, Califórnia, União Europeia e México, além de normas técnicas como a ISO 30500 e as diretrizes da OMS. “Esses referenciais demonstram a viabilidade segura, econômica e ambientalmente positiva do reúso”, ressalta.
A flexibilidade de aplicação dos sistemas de reúso permite sua adaptação a diferentes contextos urbanos, industriais e agrícolas, com implantação modular e integração à infraestrutura já existente. Um ponto crucial é a independência climática do reúso, que, ao contrário das fontes tradicionais, não depende diretamente do regime de chuvas, conferindo resiliência frente às mudanças climáticas.”
Eduardo Pedroza, diretor da Associação Latino-americana de Dessalinização e Reuso de Água (Aladyr Brasil)
Fonte: REVISTA SANEAR – SANEAMENTO E CRISE CLIMÁTICA: ADAPTAÇÃO JÁ! – edição nº 51